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Os últimos tempos árabes, no sul da Península Ibérica, foram tempos conturbados entre as várias facções muçulmanas, num contexto de pressão cristã sobre os seus territórios. Num misto de referência histórica e de lenda, emerge um local de culto e de guerra: o ribat al-Rihana (Arrifana), fundado por um sufi (místico) dissente, Ibn Qasî. A sua existência, no termo de Silves, foi objecto de especulação entre os historiadores. Algures nas arribas da Costa Vicentina, Aljezur era a mais provável e consensual localização do ribat - fortaleza de carácter eremita, vinculada à guerra santa, era, simultaneamente, uma instituição conventual destinada ao retiro, à oração e à defesa militar do domínio do Islão. Geralmente, o recinto amuralhado de um ribat (ou rábita) albergava no seu interior vivendas, armazéns e, pelo menos, uma mesquita.
A procura do ribat al-Rihana segue a reconstituição da vida de Ibn Qasî. De origem cristã, nasceu em Gila, na região de Silves e foi funcionário de impostos. Revoltou-se contra o poder almorávida , por volta de 1144, tendo sido assassinado em 1151.
"Poucos são os autores que se debruçaram sobre a história dos últimos tempos Garb al-Andalus que não abordaram a figura problemática de Abû-l-Qâsim Ahmad Ibn al Husayn Ibn Qasî, à qual se encontra sempre ligada a existência do denominado ribat al-Rihana, por ele fundado" (...) "É bem possível que do ribat da Arrifana tenham partido os monges guerreiros saídos do Algarve para participarem em 1147 na conquista almoada de Sevilha, chefiada por Barraz, embora em 1151, com o assassinato de Ibn Qasî, a destruição da sua obra e a subsequente perseguição dos seus discípulos, ele deva ter sido para sempre abandonado", referem Rosa Varela Gomes e Mário Varela Gomes.
Segundo os dois historiadores, que têm investigado este aspecto particular da história do Garb, "apesar da importância conferida ao ribat da Arrifana, pelos autores muçulmanos do século XII, o local não surge nos relatos da conquista cristã do Algarve, permitindo deduzir que terá perdido significado após o desaparecimento do seu fundador. Uma das mais antigas referências, da historiografia portuguesa, a Ibn Qasî e ao seu ribat da Arrifana, deve-se a Fr. Vicente Salgado (1786), tendo João Baptista da Silva Lopes noticiado, cerca de meio século depois, que, no concelho de Aljezur, 'Na costa em hum sítio elevado, sobranceiro ao mar, se encontrão ruinas de edifícios de huma não pequena povoação, cujas ruas ainda se conservão'".
O mistério da murta
Mas o aspecto mais importante foi, até aqui, a localização errónea do ribat. "O topónimo Arrifana, muito difundido em Portugal e sendo derivado da designação em árabe da planta conhecida por mirto ou murta (Myrtus Lin.), ainda hoje subsiste na costa atlântica do Algarve, a sul do rio de Aljezur e não longe da povoação com aquele nome.
Aquela pervivência, na área do actual concelho de Aljezur, conduziu a que o ribat de Ibn Qasî tenha, quase sempre, sido localizado no sítio onde se encontram ruínas de fortaleza erguida no século XVII, sem que ali se identificassem quaisquer vestígios arqueológicos de tal presença. Este aspecto conduziu diversos autores a proporem outras localizações para aquele assentamento, chegando-se, mesmo, a alvitrar que teria ocupado o castelo de Aljezur.".
Todavia, durante uma visita efectuada, em 2001, pelos investigadores da Universidade Nova de Lisboa, a locais da costa do concelho de Aljezur, onde tinham sido descobertos materiais islâmicos, foi identificado, num deles, na pequena península denominada Ponta da Atalaia, ruínas de diversas construções, incluindo, pelo menos, três qiblas , com mihrab , e diverso espólio. "Reconhecemos tratar-se de ribat e, muito possivelmente, do mais célebre do Gharb, onde se prepararam para a djihâd os aguerridos muridun seguidores de Ibn Qasî.", concluem Rosa e Mário Varela Gomes.
"A hoje denominada Ponta da Atalaia corresponde a pequena península, com cerca de 250 m de comprimento e 100 m de largura máxima, delimitada por altas escarpas que caem, quase verticalmente, sobre o Oceano.
Localiza-se a pouco mais de 6 km a poente de Aljezur, perto do local conhecido por Vale da Telha, incluído na zona outrora chamada Arrifana, conforme se regista em cartografia antiga, topónimo que migrou para sul, talvez devido à identificação errónea de fortificação, existente a 2,5 Km, com o ribat de Ibn Qasî.
A paisagem é telúrica, desenvolvendo-se alta plataforma litoral, coberta por dunas e vegetação rasteira, varridas pelos ventos e, grande parte dos dias, envolta em denso nevoeiro.
Ali se ouve a acção do mar, agitado ou calmo, mas constantemente batendo na base das negras falésias, caprichosamente recortadas, cujo substrato é constituído por rijos xistos e grauvaques do Carbónico."
Porquê uma rábida nos confins do termo de Silves? Respondem os historiadores:
"A Ponta da Atalaia - Arrifana é uma pequena finis terrae, ainda hoje isolada numa paisagem com fracos sinais de antropização e que muito recorda o Cabo de São Vicente. Aliás, aquele é dali visível em dias de céu limpo e luminoso, tal como no sentido oposto se pode observar largo trecho de costa que atinge o Cabo Sardão, já no Alentejo, dado constituir um dos pontos mais ocidental de longo sector da costa.
As características geográficas da Ponta da Atalaia, respondem à necessidade de isolamento e de austeridade, imprescindíveis ao ascetismo, à contemplação e à reflexão metafísica, factores característicos da mística sufi, ali se propiciando o encontro com o transcendente. Também não achamos despiciendo o facto daquele local se encontrar muito afastado dos principais centros representativos do poder almorávida, contra o qual se haveria de revoltar Ibn Qasî."
Em 2001 e 2002 são feitas campanhas de escavação, que confirmam a certeza dos historiadores: com duas mesquitas e várias edificações a ligá-las, numa extensão de cerca de 10.000 m2, ali está o complexo militar-religioso fundado por Ibn Qasî.
Um ribat único em Portugal
"No sector I escavámos parte de duas mesquitas, identificando-se as paredes e os alicerces da quase totalidade de uma delas, e, no sector II, a cerca de 25 m para noroeste, descobriu-se pequena mesquita, ou oratório, e restos de outras construções.
Mesquitas na falésia
Entre o espólio recolhido na Ponta da Atalaia, encontram-se peças que eram introduzidas nas paredes das mesquitas, contendo frases, pintadas, gravadas ou em relevo, de carácter religioso - entre elas dois pequenos rolos de chumbo, que revelam práticas mágico-religiosas ainda pouco estudadas. A reconstituição dessas práticas poderá ser o próximo capítulo da investigação arqueológica da presença árabe na Costa Vicentina.
"Muito embora nos documentos muçulmanos sejam mencionadas várias rábitas na Península Ibérica e tenham permanecido diversos topónimos que parecem indicar estruturas do mesmo tipo, até à identificação do ribat da Arrifana apenas se conhecia o de Guardamar (Alicante).
Este tipo de construções e, em particular, as localizadas junto à costa, encontravam-se, normalmente, relacionadas com os inícios da ocupação de territórios, integrando a sua defesa ou, também, estratégia ligada à perspectiva de novas conquistas. Ilustram tais casos o ribat de Monastir e o de Susa, fundados, respectivamente, em 796 e 861. Por outro lado, surgem rábitas que reflectem alterações políticas e administrativas no seio de territórios já islamizados, como exemplificam a de Tit (Mazagão) e a de Rabat (ambas almoadas).
Apesar da escassa área ainda escavada do ribat da Arrifana, a sua localização, sobranceira ao mar, assim como a arquitectura das mesquitas já identificadas e a organização do espaço de todo o complexo sugere, apesar das diferenças cronológicas, grandes afinidades com o ribat de Guardamar.
Se em Guardamar o ribat foi edificado sobre as dunas litorais, em antiga península, no caso algarvio agora dado a conhecer, o ribat instalou-se em promontório isolado e também frente ao oceano. Aliás, tinha localização idêntica o famoso santuário do Cabo de São Vicente, onde existia a igreja do Corvo, situado não muito longe da Arrifana. É possível que aquele lugar santo, frequentado tanto por peregrinos cristãos como muçulmanos, tenha, de algum modo, inspirado Ibn Qasî na escolha do sítio onde iria erguer o seu ribat, sugestionado, ainda, pelo mistério próprio de todas as finisterras, onde melhor se sente o ambiente próprio da interface dos dois principais ecossistemas do planeta e, de modo particular, nos confrontamos com a imensa vastidão do mar desconhecido.
O ribat da Arrifana terá sido mandado construir em torno a 525 H (1130) e abandonado em 546 H ( 1151), certamente depois de muitas obras de ampliação e reestruturação, cronologia que corresponde à dos materiais ali exumados.
É bem possível que, naquele local, tenha sido escrito o célebre livro de Ibn Qasî, "O Descalçar das Sandálias", cujo manuscrito ou cópia terá sido oferecido, por um dos seus filhos e seguidor, a Ibn al-Arabi (1165-1240), e a quem se deve significativo comentário, como ali nasceu o movimento místico que proporcionou o suporte ideológico da revolta contra almorávidas e almoadas".
Créditos:
Rosa Varela Gomes
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Mário Varela Gomes
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Academia Portuguesa da História
Adaptado para web a partir do artigo "O ribat da Arrifana (Aljezur, Algarve) - Identificação e primeiros trabalhos", mimeo, Lisboa, Setembro de 2002
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