Por TERESA RESENDE
23/06/2001 - in Expresso.pt
Quem aprecia marisco não lhe estranhará o sabor agridoce. Isto se já teve ocasião para lhe tomar o gosto: enquanto japoneses e franceses lhe chamam um pitéu, por cá apenas os pescadores parecem deleitar-se com os ouriços-do-mar.
Sob as águas do nosso mar esconde-se um verdadeiro tesouro gastronómico. No entanto, poucos portugueses lhe terão alguma vez espetado o dente. Fala-se de «paracentrotus lividus», que é como quem diz, ouriços-do-mar. É verdade, estes bicharocos cheios de picos, parentes das estrelas-do-mar, são uma perdição, sobretudo para os franceses e japoneses. Importam-nos às toneladas e consomem-nos ao natural, em «pâte», em sopas ou como ingrediente de requintadas receitas. À francesa e à japonesa, pois bem. Nós por cá, não lhes ligamos. Na verdade, poucos os conhecem.
Normalmente, só os pescadores têm o privilégio de se banquetearem com este petisco, como é o caso de António Escaleiro, que os come «desde os quatro anos». Um dos seus sítios de pescaria é o Carreiro Longo, um lajedo escondido entre altas e negras escarpas, situado perto da praia do Carvalhal, no Alentejo, mas que os veraneantes desprezam por ter seixos em vez de areia. Aqui encontram-se ouriços-do-mar com fartura, basta-lhe uma maré vazia, de preferência numa altura de maré grande, que é quando as águas mais baixam e deixam as rochas quase nuas. A descida não é fácil para um leigo, mas Escaleiro, homem seco e ligeiro, parece que tem asas nos pés. Em meia dúzia de minutos chega ao destino. Leva consigo um parco equipamento: um fato de borracha, um pau com um ferro na ponta em forma de gancho e uma rede. Na cabeça, uma boina basca, que, acrescente-se, faz a distinção num rosto de feições mouras e olhos cor de mel.
Com água pelos joelhos, por vezes, um pouco mais acima, leva pouco tempo a descobrir as bolas de espinhos presas às rochas e dissimuladas entre as algas. Com a ajuda do gancho separa o marisco da pedra e agarra-o à mão para o meter na rede. A força, quer para desprender os ouriços, quer para os manusear, tem que ser muito bem doseada, senão mata o bicho ou ainda se espeta numa das suas agulhas. Em pouco mais de uma hora, e com a ajuda do neto André, tem a captura feita. O conteúdo das redes é espalhado numa rocha para ser lavado. Quanto menos peso supérfluo tiver que carregar às costas na subida, melhor. Este é também o momento para apreciar as cores dos bichos: verde, castanho e púrpura, sem dúvida os mais vistosos. Inicia-se então a subida, a passos um pouco mais pausados que na descida.
À espera da pescaria, num dos cafés do Brejão, está a mulher de António Escaleiro. Enquanto atende a clientela, o marido vai preparando o petisco e num ápice a mesa fica posta: um enorme alguidar cheio de ouriços, pão torrado com manteiga e cerveja. O marisco foi cozido em água durante dois ou três minutos com espinhos e tudo. Agora há que arrancar-lhe das entranhas os órgãos reprodutores, é aí que está a sua excelência. Para alcançar o âmago do animal, é preciso ajeitar uma das mãos em forma de concha de modo a acomodá-lo pela parte espinhosa e com a outra mão segurar uma faca e enfiá-la pela chamada «lanterna de Aristóteles», a boca. Sem nunca esquecer que a força é, neste caso, o pior dos inimigos, roda-se a faca até partir a carapaça do ouriço em duas partes. No interior, muito bem guardadas, estão uma espécie de línguas de um cor-de-laranja intenso, que mais não são do que as gónadas, as suas glândulas sexuais.
Para um devoto dos frutos do mar, o ouriço constitui a síntese de todos os sabores. É mar em estado puro quando se mete à boca e doce à medida que se vai entranhando. É intenso e também bastante nutritivo. Uma barrigada de ouriços deixa qualquer um satisfeito. António Escaleiro optou por os cozer, porque em sua opinião «crus embebedam, dão assim umas voltas à cabeça». Mas há quem os aprecie sem cozedura. Os franceses, por exemplo, são capazes de os comer apenas com um pouco de sumo de limão, echalota (uma espécie de alho) e sal, acompanhados com pão com manteiga ou sobre canapés. Segundo um estudo realizado por investigadores portugueses («Recursos Faunísticos e Marítimos Portugueses», 1989), consumiam-se em França, no final dos anos 80, entre 700 e 800 toneladas de ouriços por ano, 600 das quais eram importadas sobretudo da Irlanda, mas também da Grécia e de Espanha.
O apreço por este marisco é tal que todos os anos nas zonas costeiras da Provença, entre Dezembro e Março, se organizam «Oursinades», festas de degustação de ouriços-do-mar («oursins», em francês). Em Sausset-les-Pins, o ouriço é rei nos últimos três domingos de Janeiro. Os restaurantes montam as mesas ao longo do porto e vendem as línguas de «oursins» sobre finas fatias de pão, com umas gotas de limão e outras tantas de vinho branco fresco ou temperadas dentro das carapaças, sem os incomodativos picos, para comer à colher. As gónadas de ouriço transformadas em caldo ou puré servem para aromatizar molhos, maioneses ou simplesmente para molhar o pão. Também podem ser utilizadas para condimentar sopas de peixe e mariscos.
Não menos sofisticados no que toca a gastronomia, os japoneses são igualmente grandes adoradores desta iguaria, só que no Japão comer o marisco fresco é um luxo muito raro, já que os seus mares não lhes concederam esta oferenda. Comem as gónadas enlatadas após terem sido cozidas em vapor («mushi uni»), salgadas ou em semiconserva, misturando-as com álcool, açúcar, amido, aditivos e corantes («neri uni» e «tsubu uni») ou em pasta («uni aemono»), a forma mais económica de as consumir. Nos Estados Unidos, China, Espanha e Itália também se consomem ouriços-do-mar, mas em menores quantidades. Segundo Helena Carreiro e João Paulo Fonseca, autores do estudo «Recursos Faunísticos e Marítimos Portugueses», o consumo deste invertebrado por populações do litoral data dos princípios do Neolítico (5000 a.C.). Na Europa, desde o século IV a.C. que aparecem referidos em manuscritos, aliás, a denominação «lanterna de Aristóteles» deve-se ao facto de ter sido o filósofo o primeiro a descrever as suas características zoológicas.
Há «paracentrotus lividus» no Atlântico, desde a costa oeste da Irlanda e da Escócia, o limite norte da sua distribuição geográfica, até ao Rio de Ouro, na costa ocidental africana, o limite sul. Também se encontram na Madeira, Açores e Canárias e um pouco por todo o Mediterrâneo. Os países que se dedicam à sua exploração são sobretudo a França, Irlanda, Itália, Espanha e, em tempos, Portugal. Na costa africana, o comércio estás nas mãos de tunisinos e marroquinos. Em 1985/86, a Direcção-Geral das Pescas concedeu autorização para a apanha deste marisco em águas territoriais. A captura era permitida entre Outubro e Março, altura do ano em que as gónadas estão no ponto para serem comidas.
Em 1987, a legislação passou a definir seis zonas para apanha de ouriços-do-mar, coincidentes com as zonas de recolha de algas, e um limite máximo de 15 toneladas em cada uma dessas zonas. «Chegámos a exportar 10 toneladas da zona de Sesimbra», recorda Rogério Antão, técnico de pescas na Direcção-Geral das Pescas e Aquicultura. Mas foi negócio de pouca dura. Nos anos 90, a nova lei veio proibir a pesca com semiautónomo, a qual permite ao mergulhador permanecer várias horas debaixo de água, uma vez que recebe oxigénio através de um tubo alimentado a partir da embarcação. A excepção coube apenas à apanha de algas. Desde então, só se podem apanhar ouriços à mão, como António Escaleiro, ou por apneia, o que torna inviáveis grandes capturas.
Foi-se o negócio, ficaram os ouriços. Ainda bem. Em Castelo de Neiva, no norte do país, é costume serem as mulheres a apanhá-los. Comem-se sobretudo na altura do Natal, cozidos, assados ou transformados em sopa. Com a água de os cozer coada, um bocadinho de massinha e mais uns acrescentos, está a sopa feita. Um petisco forte, diz Rogério Antão, que já teve o prazer de provar: «Quando uma pessoa acaba de comer está a suar.» Em Sesimbra, no restaurante Ribamar confeccionam lombo de abrótea com algas e creme de ouriço, e no Brejão, no café Miramar, com um bocado de sorte é possível comer uns ouriços-do-mar, simplesmente cozidos, pescados nas redondezas por António Escaleiro. Outra hipótese é tentar pela costa fora, nos locais frequentados por pescadores, tendo em conta que este marisco não se dá em zonas de areal, mas sim onde há rochas e algas. De qualquer modo, essa aventura só será realizável daqui a uns meses, em Setembro, Outubro, altura em que as carnudas línguas dos «paracentrotus lividus» estão de fazer crescer água na boca.